domingo, 18 de abril de 2010

REUNIÃO 21.3.2010 - A ORAÇÃO DO CORAÇÃO




Conferência proferida em 21.03.2010
Por Ir. Maria de Fátima Guimarães, OSB
Diretora dos Oblatos do Mosteiro de São João
Campos do Jordão - SP




Continuando o tema da oração, hoje nós vamos falar da oração monástica conhecida como oração do coração ou oração de Jesus, praticada pelos hesicastas, e considerada a alma da espiritualidade oriental.
A palavra hesicasta significa calma, silêncio, contemplação e remonta aos primeiros séculos cristãos (século V e VI) no monte Sinai e no deserto do Egito.
Trata-se de uma mística que atribui à alma humana, como sua finalidade, a deificação. Entendamos primeiramente o que quer dizer a deificação da alma humana. De acordo com o Genesis (Gn 1,26) o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Só que essa imagem foi quebrada, foi partida pelo pecado. Nós somos seres fragmentados, divididos. A imagem de Deus em nós está deformada.
O ideal do monge é reconstruir essa imagem perdida. E aí nós recordamos que a palavra monge vem de MONOS que quer dizer UNO. Ser uno em si mesmo, ser uno com Deus e ser uno com os irmãos. Isso não quer dizer que é um passo e depois o outro, mas tudo ocorre simultaneamente. À medida que eu vou me desfragmentando, vou me tornando um com Deus e conseqüentemente com os irmãos. É a theosis ou divinização. São Pedro em sua epístola diz que a meta da vida humana é tornar-se participante da natureza divina. Como? Recebendo o Espírito Santo
É interessante nos lembrar que a Bíblia Sagrada diz que precisamos sofrer como ouro no cadinho – o ouro para ser purificado deve ser aquecido a altas temperaturas. O ourives só dará por terminado o trabalho quando vir seu rosto refletido no ouro como num espelho. É assim com Deus e conosco. Trata-se de nos tornarmos em um alter Christus.
Para fixar o espírito em Deus, os hesicastas utilizavam-se de técnicas de repetição de uma oração curta (que hoje chamaríamos de jaculatória).
Essa doutrina hesicasta se perdeu por muito tempo, depois foi transmitida à Rússia. Na Rússia havia os peregrinos, os loucos de Deus. Pessoas que deixavam tudo para peregrinar pelos lugares santos, a viver uma vida ascética, sem lugar para morar, dependendo da caridade. E como era comum na Rússia, sempre havia pessoas que os acolhiam.
É dentro desta perspectiva que surge o livro Relatos de Um Peregrino Russo. Não se sabe quem é esse peregrino. E ele nos conta como encontrou essa doutrina do hesicasmo e isso transformou a sua vida.
Jean Ives Leloup, em seu livro Escritos sobre o Hesicasmo, capítulo 6, comenta que todos nós somos peregrinos em marcha. Estamos de passagem na terra e temos que descobrir o sentido deste caminhar.
Tudo começa quando ele entra na igreja para rezar durante o ofício e ouve a Epístola aos Tessalonicenses – “Rezai sem cessar” (1Ts 5,17).

“No vigésimo quarto domingo depois da Trindade, eu entrei na igreja para rezar durante o ofício; estando lendo a Epístola do Apóstolo aos Tessalonicenses, na passagem que diz: Rezai sem cessar. Estas palavras penetraram profundamente em meu espírito e eu me perguntei como era possível rezar sem cessar quando cada um de nós tem de ocupar-se de muitos trabalhos para seu próprio sustento. Procurei na Bíblia e li com meus próprios olhos aquilo que ouvira: - É preciso rezar sem cessar (1Ts 5,17), rezar em todo tempo, no Espírito (Ef 6,18), erguendo em todo lugar mãos santas (1Tm 2,8). Por mais que refletisse, não sabia o que decidir.
-O que fazer? Pensava. Onde achar alguém que possa explicar-me essas palavras? “Eu irei às igrejas onde pregam homens de renome e aí talvez eu ache o que procuro”.

O peregrino não achou resposta para esse questionamento nos sermões que ouvira, e como as palavras atraíam irresistivelmente o seu espírito, resolveu procurar alguém sábio e experimentado nas coisas de Deus. Procurou por pessoas consideradas santas, superiores de mosteiros, mas ninguém lhe dava a explicação que respondesse à sua inquietação. Até que ele encontrou-se com um monge idoso, que se interessou por ele e lhe deu a resposta que ele procurava. E depois disso começou a ensiná-lo. Este monge lhe disse que o próprio Deus lhe havia colocado aquela inquietação na alma.
Jean Ives Leloup em seu livro esclarece que entre os hesicastas, a compreensão e o amor de Deus se transmitem de pessoa para pessoa, pelo olhar do staretz (mestres espirituais). “Para os mestres espirituais a oração é uma arte, muito mais que uma técnica, quer dizer que se trata de “uma meditação que tem um coração.””

Em primeiro lugar este monge lhe disse que antes de tudo, antes de qualquer coisa que vamos empreender devemos rezar e baseou esta afirmação no trecho da carta de São Paulo a Timóteo – “Eu vos recomendo antes de tudo rezar” (1Tm 2,1) A oração é fonte das virtudes e das boas obras. A obra da oração está acima de todas as outras, pois sem ela, nenhum bem pode ser feito. Sem a oração freqüente, não se pode achar o caminho que conduz ao Senhor, conhecer a Verdade, crucificar a carne com as suas paixões e desejos, ser iluminado no coração pela luz de Cristo e unir-se a Ele na salvação.
Lembrando ainda o Apóstolo Paulo – “Nós não sabemos o que pedir como convém (RM 8,26). Isso quer dizer que a correção de nossa prece não depende de nós.” É o Espírito que reza e suplica em nós com gemidos inefáveis.
Para nós estas palavras são importantes e verdadeiras, por que estão na Escritura Sagrada, por que faz parte integrante da espiritualidade monástica que seguimos e por que está contido n Prólogo da Santa Regra – [4] Antes de tudo, quando encetares algo de bom, pede-lhe com oração muito insistente que seja por ele plenamente realizado
Esse monge do qual não se menciona o nome ensinou o peregrino a oração de Jesus ou oração do coração.
A oração de Jesus, interior e constante, é a invocação contínua e ininterrupta do nome de Jesus com os lábios, com o coração, com a inteligência, no sentimento de sua presença, em todo o tempo, em todo o lugar, mesmo durante o sono.
As palavras a serem repetidas são “Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim.”
Existem algumas variações nesta frase dependendo do lugar, mas é basicamente isto.
Aquele que se habitua a essa invocação sente uma grande consolação e a necessidade de rezar sempre essa oração; depois de algum ele não pode passar sem ela e por si mesma a oração brota nele. Isso é a oração perpétua.
Esse monge lhe deu um livro chamado Filocalia que contém textos de 25 Padres da Igreja que tratam desta ciência da oração interior perpétua. O termo Filocalia quer dizer “amor à beleza”. A oração é a arte pela qual a pessoa se une à última Beleza. Orar é ir do reflexo à luz ou voltar da luz venerando-a em seus reflexos. E os reflexos são a natureza, as pessoas.

Existe uma passagem no livro Filocalia, escrito por São Simeão, o Novo Teólogo que diz: “Permanece sentado no silêncio e na solidão, inclina a cabeça, fecha os olhos; respira mais devagar, olha, pela imaginação, para o interior do seu coração, concentra tua inteligência, isto é, teu pensamento, da tua cabeça para teu coração. Dize, ao respirar: “Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim”, em voz baixa, ou simplesmente em espírito. Esforça-te para afastar todos os pensamentos, sê paciente e repete muitas vezes esse exercício”.
Jean-Ives Leloup esclarece sobre os elementos do método hesicasta encontrado nos ensinamentos do mestre espiritual do peregrino russo.
  1. Assenta-te: refere-se à postura, à atitude correta, não estar impaciente, indolente, mas vigilante. É a postura da bem-amada do Cântico dos Cânticos: “Durmo, mas o meu coração vela.” A maneira correta de sentar-se é aquela que nos permite permanecer mais tempo possível imóveis, pois a imobilidade favorece o espírito. A nível psicológico é estar em harmonia consigo mesmo, equilíbrio e estabilidade. A nível espiritual é permanecer em Deus, ter Nele a nossa raiz.
  2. Cala-te: Silêncio dos lábios, do coração e do espírito – três degraus do silêncio que nos levam ao silêncio infinito da Presença
  3. Respira mais suavemente: Ao acompanhar a respiração, suavizá-la você se concentra no que está fazendo. Além disso, a respiração é um meio de controlar o psiquismo. Nós pensamos de maneira diferente quando respiramos com calma e profundidade. Para a tradição hesicasta a atenção ao respirar é um exercício espiritual. O respirar é o Ruah, o pneuma, o hálito de Deus, é o Espírito Santo. Aquele hálito, aquele sopro que Deus deu nas narinas de Adão. É aquele que sopra onde quer. É vento que você não sabe de onde vem nem aonde vai. Respirar profundamente é aproximar-se do Espírito Santo.
4.      Olhar pela imaginação para o íntimo de teu coração. Temos que tomar cuidado com a imaginação. Como dizia Santa Teresa D’Ávila: a imaginação é a louca da casa. A imaginação pode nos distrair da oração. Os monges não querem um estado subjetivo, mas um contato objetivo. Exemplo: visualizar o coração batendo dentro do peito e objetivo. Ir além é subjetivismo. Conta-se que um jovem discípulo procurou o seu mestre porque não conseguia se concentrar na oração. O Mestre lhe disse para colocar um banquinho ao seu lado e imaginar que Jesus sentava-se ali quando ele começava a rezar. Assim ele conversaria com Jesus durante a oração. Advertiu-o, no entanto, para que não imaginasse qual seria a aparência de Jesus, mas somente a sua presença. O discípulo fez como o Mestre havia mandado e conseguiu a partir daí se concentrar na oração. O tempo passou e o discípulo ficou muito doente. Quando ele morreu, encontram-no com a cabeça apoiada no banquinho. Ele havia morrido com a cabeça apoiada nos joelhos de Jesus. Para os hesicastas o lugar de Deus é o coração.
A oração hesicasta tem como finalidade despertar a sensibilidade a presença de Deus em todas as coisas. Em tudo nós vamos ver verdadeiras epifanias de Deus. O coração tem a função de integrar a nossa personalidade (estudo a nível teológico e psicológico).
 5.  Invocação do Nome de Jesus: Os monges do Monte Athos preferiam a fórmula “Kyrie eleison”. Por causa da vibração do som. Sabemos que muitas músicas conseguem favorecer o estado de oração. A repetição do Kyrie eleison para estes monges favorecia mais que o Senhor, tende piedade. Para o autor do livro sobre o hesicasmo, nós perdemos muito com a tradução. E ele ainda diz que quando pedimos piedade, queremos dizer envia o teu Espírito Santo, tua Bondade, tua Misericórdia, transforma meu coração... E o Nome de Jesus significa a sua presença. Lembrando os antigos israelitas que consideravam que o Nome de Deus é o mesmo que a Presença de Deus. Nós vemos na Bíblia que o templo de Jerusalém era habitação do Nome de Deus. Nós clamamos por Ele como a sede clama pela Fonte. É a água viva que nós queremos que brote dentro de nós como fonte a jorrar – promessa de Jesus para a Samaritana. Ou como diz o salmo 62, 2: Minha tem sede de Ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água como terra seca e sem água. É o adorar em espírito e verdade. Ele vai ser o meu mestre interior. Essa invocação pode ser em voz baixa ou em espírito. O método oral é usado por muitos porque você se concentra na sua própria voz.
6.  Ser paciente e repetir muitas vezes: O artista deve ser paciente, e repetir muitas vezes o exercício antes de se deixar levar pela inspiração. O mestre propõe ao peregrino um treinamento progressivo. A qualidade da oração depende de Deus, mas a quantidade que podemos oferecer depende de nós. “É o tempo que passas com atua rosa que a torna preciosa.” É a quantidade que nos coloca em condições de perceber quando a graça chega até nós. Os primeiros efeitos da repetição levam luz e mostram nossas misérias.

A partir daí o peregrino começou a praticar a oração e a estudar a Filocalia.  O monge entregou a ele um rosário com o qual poderia recitar três mil orações por dia, sem pressa, docemente, sem importar o que estivesse fazendo.
Quando o peregrino conseguiu rezar sem esforço e até com alegria, o monge aumentou para seis mil orações por dia. Assim o peregrino se habituou à oração – sentia-se leve, feliz, queria ficar recolhido. E nesse ponto o monge aumentou para doze mil orações por dia a fim de fortificá-lo.
Assim o peregrino era acordado pela oração. Não se cansava de rezar. Nesse ponto, o monge permitiu que ele rezasse quantas vezes ele desejasse.
O livro conta que o peregrino sentia-se feliz, como se todos fossem sua família, o coração estava apaziguado. Tudo era motivo de agradecer. Com a oração ele apaziguava a fome, o frio, superava raiva e sofrimento. De acordo com os relatos, o monge faleceu e o peregrino continuou o seu peregrinar levando o rosário, a Bíblia e a Filocalia. Nesse ponto o peregrino ainda não tinha chegado à oração interior perpétua e espontânea, mas estava a caminho.  Os relatos nos contam que ele aprendia com aqueles que encontrava, com os acontecimentos, aprendia em sonhos com o falecido monge e mais tarde encontrou outro guia espiritual.                          
Através da oração de Jesus chegava-se ao conhecimento da linguagem da criação – conversar com as criaturas, perceber que a criação toda louva o Senhor e que foi feita em honra do homem.

De acordo com os ensinamentos dos mestres, é necessário exercitar-se em achar o próprio coração, em vê-lo tal como ele é. E depois introduzir a oração de Jesus no coração e fazê-la sair no ritmo da respiração. Inspira-se o ar e o conserva no peito dizendo Senhor Jesus Cristo, e o soltava dizendo tende piedade de mim. Para isso é necessário exercitar-se. É normal com o tempo experimentar sensações novas no coração e no espírito, tais como leveza, liberdade, alegria, amor ardente por Jesus e pela criação, gratidão, lágrimas. De acordo com o peregrino nós podemos entender as palavras de Jesus no Evangelho de Lucas (Lc 17, 21): “O Reino de Deus está dentro de vós.”
Os efeitos da oração do coração se manifestam de três maneiras:
  1. No espírito – doçura do amor de Deus, a calma interior, arrebatamento do espírito, pureza do s pensamentos, esplendor da idéia de Deus;
  2. Nos sentidos – agradável calor do coração, plenitude de doçura nos membros, exaltação de alegria no coração, leveza, vigor da vida, insensibilidade às doenças e dores;
  3. Na inteligência – iluminação da razão, compreensão da santa Escritura, conhecimento da linguagem da criação, desapego das vãs preocupações, consciência da doçura da vida interior, certeza da proximidade de Deus e de seu amor por nós.
Com o tempo da prática a oração se fazia por si só, brotava do espírito e do coração, mesmo em estado de vigília ou durante o sono e não se interrompia. Se estava trabalhando a oração agia por si só e o trabalho rendia mais. Se escutava ou lia algo conseguia sentir ambas as coisas.
Não se deve, entretanto achar que só se terá consolações com a oração interior. Sabemos que todos aqueles que iniciam no caminho de Deus encontrarão a provação – Eclesiastes. Pois bem, de acordo com um dos Padres da Igreja, cujo texto está contido na Filocalia (João de Cárpatos) – Todos que se dedicam com ardor à oração estão sujeitos às tentações terríveis e arrasadoras. Mas não existe tentação acima das forças do homem. “Aquele que está em vós é maior do que aquele que está no mundo” (1Jo 4,4)
Essa confiança e esperança sustentaram tantas pessoas, principalmente os santos. Mas não se trata só de rezar, mas de ensinar os outros a rezar.
      A manifestação do inimigo demonstra que a oração é autentica. Ele é uma potência que contraria ou destrói a vida querida por Deus.

São Gregório de Tessalonica – “Não nos é suficiente rezar sem cessar conforme o mandamento divino, mas é necessário que saibamos expor esse ensinamento a todos: monges, leigos, inteligentes ou simples, homens, mulheres ou crianças, a fim de despertar neles o zelo pela oração interior.
Citação de Nicetas Stéthatos: “Aquele que chegou à oração e ao verdadeiro amor, não distingue mais os objetos, na distingue mais o justo do pecador, mas ama igualmente todos os homens e não os condena, do mesmo modo que Deus faz nascer o sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos (MT 5, 45).

A oração do coração nos leva a caminhar na Presença de Deus. E é esse caminhar que nos transforma. Caminhar na presença de Deus ou sob o olhar de Deus é um traço da espiritualidade de Bento – viver sob o olhar de Deus, que nós estudamos no ano passado. Vivendo na proximidade de alguém nos leva a nos assemelharmos a esse alguém. O amor une e assemelha.
Podemos resumir dizendo que o homem é Templo do Espírito. Essa é a meta de todo o homem neste mundo de acordo com São Serafim de Sarov, santo da Igreja Oriental e um famoso staretz.


BIBLIOGRAFIA:
  1. Relatos de um Peregrino Russo, Jean Gauvain, Ed. Paulus, 14ª edição, 2009
  2. Escritos sobre o Hesicasmo, Jean-Yves Leloup, Ed. Vozes, 2003
  3. Pequena Filocalia, diversos autores, Ed. Paulus, 7ª edição, 2006