terça-feira, 16 de novembro de 2010

Santa Gertrudes, a Grande (por Bento XVI)

Queridos irmãos e irmãs:

Santa Gertrudes a Grande, sobre quem eu gostaria de vos falar hoje, leva-nos também ao mosteiro de Helfta esta semana; lá nasceram algumas das obras-primas da literatura religiosa feminina latino-germânica. A esse mundo pertence Gertrudes, uma das místicas mais famosas, única mulher da Alemanha que tem o apelativo de "a Grande", por sua estatura cultural e evangélica: com a sua vida e seu pensamento, ela incidiu de forma singular na espiritualidade cristã. É uma mulher excepcional, dotada de talentos naturais particulares e de extraordinários dons da graça, de profundíssima humildade e ardente zelo pela salvação do próximo, de íntima comunhão com Deus na contemplação e disponibilidade para socorrer os necessitados.
Em Helfta se compara, por assim dizer, sistematicamente com sua mestra, Matilde de Hackeborn, de quem falei na audiência da última quarta-feira; entra em relação com Matilde de Magdeburgo, outra mística medieval; e cresce sob o cuidado maternal, doce e exigente da abadessa Gertrudes. Destas três irmãs suas, adquire tesouros de experiência e sabedoria; e os elabora em uma síntese própria, percorrendo seu itinerário religioso com confiança ilimitada no Senhor. Expressa a riqueza da espiritualidade não somente em seu mundo monástico, mas também - e sobretudo - no mundo bíblico, litúrgico, patrístico e beneditino, com um selo personalíssimo e com grande eficácia comunicativa.
Ela nasceu em 6 de janeiro de 1256, festa da Epifania, mas não se sabe nada sobre seus pais nem sobre o lugar de nascimento. Gertrudes escreve que o próprio Senhor lhe revela o sentido desse primeiro desapego seu; afirma que o Senhor teria dito: "Eu a escolhi como minha morada e me alegro porque tudo que há de belo nela é obra minha (...). Precisamente por esta razão, afastei-a de todos os seus parentes, para que ninguém a amasse por motivo de consanguinidade e eu fosse a única razão do afeto que a move" (As revelações, I, 16, Sena, 1994, p. 76-77).
Aos 5 anos, em 1261, entrou no mosteiro, como era costume naquela época, para a formação e o estudo. Lá transcorreu toda a sua existência, da qual ela mesma indica as etapas mais significativas. Em suas memórias, recorda que o Senhor a preservou com paciência generosa e infinita misericórdia, esquecendo dos anos de sua infância, adolescência e juventude, transcorridos - escreve - "em tal cegueira de mente, que eu teria sido capaz (...) de pensar, dizer ou fazer, sem nenhum remorso, o que me desse vontade, aonde quer que fosse, se Tu não tivesses me preservado, seja com um horror inerente pelo mal e uma natural inclinação ao bem, seja com a vigilância externa dos demais. Eu teria me comportado como uma pagã (...) e isso mesmo Tu querendo que, desde a infância, desde o meu quinto ano de idade, eu habitasse no santuário abençoado da religião, para ser educada entre os teus amigos mais devotos" (Ibid., II, 23 140s).
Gertrudes foi uma estudante extraordinária, aprendeu tudo o que podia aprender das ciências do Trívio e do Quadrívio; era fascinada pelo saber e se dedicou ao estudo profano com ardor e tenacidade, conseguindo êxitos escolares muito além de toda expectativa. Se não sabemos nada sobre suas origens, ela contou muito sobre suas paixões juvenis: a literatura, a música, o canto e a arte da miniatura a cativaram. Tinha um caráter forte, decidido, imediato, impulsivo; frequentemente afirmava que era negligente; reconheceu seus defeitos, pediu humildemente perdão por eles. Com humildade, pediu conselhos e orações por sua conversão. Há características do seu temperamento e defeitos que a acompanharão até o final, até o ponto de assustar algumas pessoas, que se perguntam como é possível que o Senhor a prefira tanto.
De estudante, passou a consagrar-se totalmente a Deus na vida monástica e, durante 20 anos, não aconteceu nada de extraordinário: o estudo e a oração foram sua principal atividade. Devido aos seus dons, ela se sobressaía entre suas irmãs; era tenaz em consolidar sua cultura em campos diversos. Mas, durante o Advento de 1280, começou a sentir desgosto por tudo aquilo, percebeu sua vaidade e, em 27 de janeiro de 1281, poucos dias antes da festa da Purificação de Maria, na hora das Completas, o Senhor iluminou suas densas trevas. Com suavidade e doçura, acalmou a turbação que a angustiava, turbação que Gertrudes via como um dom de Deus "para abater essa torre de vaidade e de curiosidade que - ai de mim - ainda carregando o nome e o hábito de religiosa, fui elevando com a minha soberba, e pelo menos assim, encontrar o caminho para mostrar-me tua salvação" (Ibid., II,1, p. 87).
Ela teve a visão de um jovem que a guiava para superar o emaranhado de espinhos que oprimia sua alma, estendendo-lhe a mão. Nessa mão, Gertrudes reconheceu "a preciosa marca dessas chagas que ab-rogaram todas as atas de acusação dos nossos inimigos" (Ibid., II,1, p. 89); reconheceu Aquele que sobre a cruz nos salvou com seu sangue, Jesus.
Desde aquele momento, sua vida de comunhão com o Senhor se intensificou, sobretudo nos tempos litúrgicos mais significativos - Advento, Natal, Quaresma, Páscoa, festas de Nossa Senhora - ainda quando, doente, não podia se dirigir ao coro. É o mesmo húmus litúrgico de Matilde, sua mestra, que Gertrudes, no entanto, descreve com imagens, símbolos e termos mais simples e lineares, mais realistas, com referências mais diretas à Bíblia, aos Padres, ao mundo beneditino.
Sua biógrafa indica duas direções do que poderíamos chamar de particular "conversão" sua: nos estudos, com a passagem radical dos estudos humanistas profanos aos teológicos, e na observância monástica, com a passagem da vida que ela define como negligente à vida de oração intensa, mística, com um excepcional ardor missionário. O Senhor, que a havia escolhido desde o seio materno e que desde pequena lhe fizera participar do banquete da vida monástica, volta a chamá-la, com sua graça, "das coisas externas à vida interior; e das ocupações terrenas ao amor pelas coisas espirituais". Gertrudes compreende que esteve longe d'Ele, na região da dissimilitude, como diz Santo Agostinho: de ter-se dedicado com muita avidez aos estudos liberais, à sabedoria humana, descuidando a ciência espiritual, privando-se do gosto pela verdadeira sabedoria, agora é conduzida ao monte da contemplação, onde deixa o homem velho para revestir-se do novo. "De gramática, converte-se em teóloga, com a leitura incansável dos livros sagrados que podia ter ou obter e enchia seu coração com as mais úteis e doces sentenças da Sagrada Escritura. Tinha, por isso, sempre pronta uma palavra inspirada e de edificação para satisfazer os que iam consultá-la e, ao mesmo tempo, os textos escriturísticos mais adequados para rebater qualquer opinião errônea e fazer calar seus oponentes" (Ibid., I,1, p. 25).
Gertrudes transforma tudo isso em apostolado: dedica-se a escrever e divulgar as verdades da fé com clareza e simplicidade, graça e persuasão, servindo com amor e fidelidade a Igreja, até o ponto de ser útil e bem-vinda para os teólogos e pessoas piedosas. Desta intensa atividade sua, resta-nos pouco, também devido às circunstâncias que levaram à destruição do mosteiro de Helfta. Além do "Arauto do amor divino" e "As revelações", temos os "Exercícios Espirituais", uma joia rara da literatura mística espiritual.
Na observância religiosa, nossa santa é "uma coluna firme (...), firmíssima propugnadora da justiça e da verdade", diz sua biógrafa (Ibid., I, 1, p. 26). Com as palavras e o exemplo, suscitava nos demais grande fervor. Às orações e às penitências da regra monástica, acrescentava outras com tal devoção e abandono confiado em Deus, que provocava, em quem a encontrava, a consciência de estar na presença do Senhor. E, de fato, o próprio Deus lhe dá a entender que a chamou para ser instrumento da sua graça. Deste imenso tesouro divino, Gertrudes se sentia indigna, confessou não tê-lo protegido e valorizado. Exclamou: "Ai de mim! Se Tu tivesses me dado para lembrança tua, indigna como sou, inclusive um só fio de estopa, ele deveria ser guardado com maior respeito e reverência do que eu tive por estes teus dons!" (Ibid., II,5, p. 100). Mas, reconhecendo sua pobreza e indignidade, ela adere à vontade de Deus, "porque - afirma - aproveitei tão pouco suas graças, que não posso decidir acreditar que foram concedidas somente para mim, não podendo tua eterna sabedoria ser frustrada por alguém. Faze, portanto, ó Dador de todo bem, Tu que me concedeste gratuitamente dons tão imerecidos, que, lendo este escrito, o coração de pelo menos um dos teus amigos se comova pelo pensamento de que o zelo pelas almas te levou a deixar durante tanto tempo uma joia de valor tão inestimável em meio ao lodo abominável do meu coração" (Ibid., II,5, p. 100s).
Em particular, dois favores lhe foram mais queridos que qualquer outro, como escreveu a própria Gertrudes: "Os estigmas das tuas chagas, que imprimiste em mim como joias preciosas no coração, e a profunda e saudável ferida de amor com que o marcaste. Tu me inundaste com estes dons teus de tanta alegria que, ainda que eu tivesse de viver mil anos sem nenhum consolo, nem interior nem exterior, sua lembrança bastaria para reconfortar-me, iluminar-me, encher-me de gratidão. Quiseste também introduzir-me na inestimável intimidade da tua amizade, abrindo-me de muitas formas esse sacrário nobilíssimo da tua divindade, que é o teu Coração divino (...). A esse cúmulo de benefícios, acrescentaste o de dar-me por advogada a Santíssima Virgem Maria, tua Mãe, e de ter me recomendado frequentemente seu afeto como o mais fiel dos esposos poderia recomendar à sua própria mãe sua esposa querida" (Ibid., II, 23, p. 145).
Dirigida à comunhão sem fim, concluiu sua vida terrena no dia 17 de novembro de 1301 ou 1302, aos quase 46 anos. No sétimo Exercício, o da preparação para a morte, Santa Gertrudes escreveu: "Ó Jesus, Tu que me és imensamente querido, fica sempre comigo, para que o meu coração permaneça contigo e teu amor persevere comigo sem possibilidade de divisão, e meu trânsito seja abençoado por Ti, de maneira que meu espírito, livre dos laços da carne, possa imediatamente encontrar repouso em Ti. Amém." (Esercizi, Milão, 2006, p. 148).
Parece-me óbvio que estas não são somente coisas do passado, históricas, mas que a existência de Santa Gertrudes continua sendo uma escola de vida cristã, de reto caminho, que nos mostra que o centro de uma vida feliz, de uma vida verdadeira, é a amizade com Jesus, o Senhor. E essa amizade se aprende no amor pela Sagrada Escritura, no amor pela liturgia, na fé profunda, no amor a Maria, de forma que se conheça cada vez mais realmente o próprio Deus e, assim, a verdadeira felicidade, a meta da nossa vida.
Obrigado.

domingo, 14 de novembro de 2010

Aconteceu...

Monjas Beneditinas visitam Caratinga

(publicado em 25 de Agosto de 2010)


As irmãs Maria de Fátima e Maria de Nazaré chegaram a Caratinga no dia 22 de agosto, para uma visita missionária histórica. Vieram pela primeira vez a Caratinga para se reunir com os oblatos, noviços e postulantes da Ordem Secular de São Bento vinculada ao Mosteiro São João Batista de Campos do Jordão.
Na oportunidade, se encontraram com o diretor espiritual do grupo de oblatos, padre Ademilson Tadeu Quirino. Estiveram com padre David José Gonçalves, pároco da Catedral, com o Vigário Geral da Diocese, Monsenhor Raul Motta de Oliveira e com o Bispo Diocesano, Dom Hélio Gonçalves Heleno.



Aproveitaram para conhecer o Santuário da Adoração, o Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário de Caratinga e a comunidade das irmãs Missionárias Nossa Senhora das Graças (irmãs Gracianas). Santo Antônio do Manhuaçu, distrito de Caratinga também recebeu as irmãs beneditinas.

 


Seu retorno para Campos do Jordão será nesta quarta-feira, dia 25 de agosto. Os oblatos de Caratinga agradecem a visita missionária e pastoral das irmãs e ficam aguardando o próximo encontro para estudo, reflexão, oração, partilha e confraternização.



Fonte: http://www.diocesecaratinga.org.br/site/noticias/noticias/710-monjas-beneditinas-visitam-caratinga
Fotos: Pe. Ademilson Tadeu Quirino






OS OBLATOS

No momento, o Mosteiro possui um grupo de oblatos que conta com quarenta e seis participantes entre oblatos, noviços, postulantes e candidatos, de diversas partes do país (Minas Gerais, Rio de Janeiro, Amazonas, São Paulo). Na cidade de Campos do Jordão se reúnem uma vez ao mês para discussões de temas referentes à Regra de São Bento e à vida monástica beneditina. Na cidade de Caratinga, Minas Gerais, formou um grupo de oblatos, que se reúnem todas as segundas-feiras e na cidade do Rio de Janeiro, há um pequeno grupo que se reúne todas sexta-feira.

Nossa primeira oblação data de 1987, e a partir daí o grupo vem crescendo paulatinamente. Contamos hoje com 15 oblatos, 6 noviços e 10 postulantes.



Os Oblatos da Diocese de Caratinga

Por volta do ano de 2007, Ir. Maria José, uma das monjas do Mosteiro São João, nascida em Caratinga, cuja família vive nesta cidade, passou a freqüentar a Casa de Maria e sua obra social. Como grande catequista e apóstola que era, divulgou a obra de São Bento para os participantes desta Casa. Alguns deles se apaixonaram por este ideal e manifestaram o desejo de serem oblatos. A partir daí a própria Ir. Maria José lhes ministrou os primeiros passos na formação e os levou até Campos do Jordão, onde fizeram o seu primeiro retiro espiritual. A partir daí, anualmente, os membros do grupo fazem um retiro anual no Mosteiro, ocasião na qual recebem formação, tem momentos de oração, aconselhamento e celebrativos.

Por morarem em cidade tão distante do Mosteiro, tem características peculiares, pois reúnem-se semanalmente para rezar o Ofício de Vésperas e terem o seu momento de formação. O grupo de oblatos de Caratinga é bem participante da vida da diocese como verdadeiros filhos da Igreja. Além disso, por serem em sua maioria membros da Casa de Maria, tem uma espiritualidade também mariana. Possuem uma coordenação local, sujeita à diretora dos oblatos e suas assistentes, bem como à Abadessa do Mosteiro São João. Além disso, possuem um padre na qualidade de orientador espiritual do grupo, que é Padre Ademilson.

A diretora dos oblatos é uma monja de votos perpétuos designada pela Abadessa do Mosteiro para exercer essa função, contando com assistentes. Atualmente, a diretora dos oblatos do Mosteiro São João é Ir. Maria de Fátima Guimarães, OSB, que conta com a colaboração de Ir. Maria Hildegardes Gomes, OSB e Ir.Maria de Nazaré Campos , OSB. A Abadessa do Mosteiro é Madre Myriam de Castro, OSB, é a segunda abadessa do Mosteiro, eleita em 14 de maio de 2001, e que recebeu a benção abacial em 01 de julho de 2001, das mãos do bispo diocesano, D. Carmo João Rhoden.


sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Recado do Ir. Michael



Meus amados irmãos e irmãs!
Benedicite!

É com grande alegria que a comunidade do Mosteiro de São João através de nossa Madre Abadessa e de todos os oblatos acolhem mais 3 noviças que realização no próximo dia 14.11.2010 durante a missa conventual sua "Oblação Monástica segundo a Regra de NP São Bento".
Pedimos a todos suas orações por essas nossas queridas irmãs da cidade de Caratinga - MG

Sempre unidos no Altar do Senhor!



Ir. Michael (Fernando), obl. OSB

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Santa Margarida de Oingt, por Bento XVI

Caros, benedicite!

O Papa nos dirige as palavras abaixo para que reflitamos acerca do caráter contemplativo que cercou a vida da monja Margarida de Oingt. Seja esta uma oportunidade de revermos o caráter contemplativo que nossas atitudes devem empreender, cerne de nossa espiritualidade.
Abraços fraternais!





Queridos irmãos e irmãs:



Com Margarida de Oingt, de quem eu gostaria de vos falar hoje, entramos na espiritualidade cartusiana, que se inspira na síntese evangélica vivida e proposta por São Bruno. Não conhecemos sua data de nascimento, ainda que alguns a situem por volta de 1240. Margarida provém de uma poderosa família da nobreza antiga do Lyonnais, os Oingt. Sabemos que sua mãe também se chamava Margarida, que tinha dois irmãos (Guiscardo e Luís) e três irmãs (Catarina, Isabel e Inês). Esta última a seguirá ao mosteiro, na Cartuxa, sucedendo-a depois como priora.
Não temos notícias sobre sua infância, mas, por seus escritos, podemos intuir que transcorreu tranquila, em um ambiente familiar afetuoso. De fato, para expressar o amor sem limites de Deus, ela valorizava muito as imagens ligadas à família, com particular referência às figuras do pai e da mãe. Em uma meditação sua, diz assim: "Muito doce Senhor, penso nas graças especiais que me deste por tua solicitude: antes de tudo, como me protegeste desde a minha infância e como me afastaste do perigo e me chamaste a dedicar-me ao teu santo serviço, como provieste em todas as coisas que me eram necessárias para comer, beber, vestir e calçar, e o fizeste de tal forma que não tive ocasião de pensar em todas estas coisas, a não ser em tua grande misericórdia" (Margherita d'Oingt, Scritti spirituali, Meditazione V, 100, Cinisello Balsamo 1997, p. 74).
Sempre em suas meditações, intuímos que entrou na Cartuxa de Polenteins em resposta ao chamado do Senhor, deixando tudo e aceitando a severa regra cartusiana, para ser totalmente do Senhor, para estar sempre com Ele. Ela escreve: "Doce Senhor, eu deixei o meu pai, a minha mãe, os meus irmãos e todas as coisas deste mundo pelo teu amor; mas isso é pouquíssimo, porque as riquezas deste mundo não são senão espinhos que espetam; e quanto mais as possuímos, mas somos infortunados. E por isso me parece não ter deixado outra coisa senão miséria e pobreza; mas Tu sabes, doce Senhor, que se eu possuísse mil mundos e pudesse dispor deles segundo a minha vontade, não me consideraria saciada enquanto não tivesse a Ti, porque Tu és a vida da minha alma; não tenho nem quero ter pai e mãe fora de Ti" (ibid., Meditazione II, 32, p. 59).
Também da sua vida na Cartuxa temos poucos dados. Sabemos que em 1288 ela se converteu na quarta priora, cargo que manteve até a sua morte, ocorrida em 11 de fevereiro de 1310. Dos seus escritos, contudo, não se desprendem viradas particulares em seu itinerário espiritual. Ela concebe toda a vida como um caminho de purificação até a configuração plena com Cristo. Ele é o livro que se escreve, que incide diariamente no próprio coração e na própria vida, em particular sua paixão salvadora. Na obra Speculum, Margarida, referindo-se a si mesma em terceira pessoa, sublinha que, por graça do Senhor, "havia gravado em seu coração a santa vida que Deus Jesus Cristo levou na terra, seus bons exemplos e sua boa doutrina. Ela tinha colocado tão bem o doce Jesus Cristo em seu coração, que lhe parecia inclusive que este estivesse presente e que tivesse um livro fechado em sua mão, para instruí-la" (ibid., I, 2-3, p. 81). "Neste livro, ela encontrava escrita a vida que Jesus Cristo levou na terra, desde o seu nascimento até sua ascensão ao céu" (ibid., I, 12, p. 83).
Cada dia, desde a manhã, Margarida se dedica ao estudo deste livro. E, quando o observou bem, começa a ler o livro em sua própria consciência, que mostra as falsidades e as mentiras da sua própria vida (cf. ibid., I, 6-7, p. 82); escreve sobre si mesma para ajudar os demais e para fixar mais profundamente no seu próprio coração a graça da presença de Deus, isto é, para fazer que cada dia sua existência esteja marcada pela confrontação com as palavras e ações de Jesus, com o Livro da vida d'Ele. E isso para que a vida de Cristo seja impressa em sua alma de forma estável e profunda, até poder ver o Livro em seu interior, ou seja, até contemplar o mistério de Deus Trindade (cf. ibid., II, 14-22; III, 23-40, p. 84-90).
Através dos seus escritos, Margarida nos oferece alguns resquícios sobre sua espiritualidade, permitindo-nos captar alguns traços da sua personalidade e dos seus dons de governo. É uma mulher muito culta; escreve habitualmente em latim, a língua dos eruditos, mas também escreve em franco-provençal, o que também é raro: seus escritos são, assim, os primeiros, dos que se tem memória, redigidos nessa língua. Ela vive uma existência rica em experiências místicas, descritas com simplicidade, deixando intuir o inefável mistério de Deus, sublinhando os limites da mente para apreendê-lo e a inadequação da língua humana para exprimi-lo. Tem uma personalidade linear, simples, aberta, de doce carga afetiva, de grande equilíbrio e agudo discernimento, capaz de entrar nas profundezas do espírito humano, de descobrir seus limites, suas ambiguidades, mas também suas aspirações, a tensão da alma até Deus. Mostra uma destacada aptidão para o governo, conjugando sua profunda vida espiritual mística com o serviço às irmãs e à comunidade. Neste sentido, é significativa um trecho de uma carta ao seu pai. Ela escreve: "Meu doce pai, comunico que me encontro tão ocupada com as necessidades da nossa casa, que não me é possível aplicar o espírito em bons pensamentos; de fato, tenho tanto a fazer, que não sei para que lado ir. Não recolhemos trigo no sétimo mês do ano e nossas vinhas foram destruídas pela tempestade. Além disso, nossa igreja se encontra em tão más condições, que nos vemos obrigados a reconstruí-la em parte" (ibid., Lettere, III, 14, p. 127).
Uma monja cartusiana descreve assim a figura de Margarida: "Através da sua obra, revela-se uma personalidade fascinante, de inteligência viva, orientada à especulação e, ao mesmo tempo, favorecida por graças místicas: em uma palavra, uma mulher santa e sábia que sabe expressar com certo humor uma intensa afetividade espiritual" (Una Monaca Certosina, Certosine, en Dizionario degli Istituti di Perfezione, Roma 1975, col. 777). No dinamismo da vida mística, Margarida valoriza a experiência dos afetos naturais, purificados pela graça, como meio privilegiado para compreender mais profundamente e seguir com mais prontidão e ardor a ação divina. O motivo reside no fato de que a pessoa humana é criada à imagem de Deus e por isso é chamada a construir, com Deus, uma maravilhosa história de amor, deixando-se envolver totalmente pela sua iniciativa.
O Deus Trindade, o Deus amor que se revela em Cristo a fascina, e Margarida vive uma relação de amor profunda com o Senhor e, por contraste, vê a ingratidão humana até a vileza, até o paradoxo da cruz. Ela afirma que a cruz de Cristo é parecida com a mesa do parto. A dor de Jesus é comparada à de uma mãe. Escreve: "A mãe que me carregou no ventre sofreu fortemente ao dar-me à luz, durante um dia ou uma noite, mas tu, dulcíssimo Senhor, por mim foste atormentado não uma noite ou um dia, mas durante mais de 30 anos (...). Quão amargamente sofreste por minha causa durante toda a vida! E quando chegou o momento do parto, teu trabalho foi tão doloroso, que teu santo suor se converteu em gotas de sangue que se derramavam por todo o teu corpo até o chão" (ibid., Meditazione I, 33, p. 59). Margarida, evocando os relatos da paixão, contempla estas dores com profunda compaixão. Diz: "Foste depositado no duro leito da cruz, de forma que não podias mover-te, virar-te ou agitar teus membros, como costuma fazer um homem que sofre uma grande dor, porque foste completamente estendido e te crucificaram com pregos (...); foram lacerados todos os teus músculos e tuas veias (...). Mas todas essas dores (...) ainda não te bastavam, tanto que quiseste que teu lado fosse aberto pela lança tão cruelmente, que teu dócil corpo foi totalmente arado e desgarrado; e teu sangue brotava com tanta violência, que formava um longo caminho, quase como se fosse uma grande corrente". Referindo-se a Maria, afirma: "Não era de maravilhar-se que a espada que te desfez o corpo penetrasse também no coração da tua gloriosa mãe, que tanto queria sustentar-te (...), porque teu amor foi superior a todos os demais amores" (ibid., Meditazione II, 36-39.42, p 60s).
Queridos amigos, Margarida de Oingt nos convida a meditar diariamente sobre a vida de dor e de amor de Jesus e da sua Mãe, Maria. Aqui está a nossa esperança, o sentido do nosso existir. Da contemplação do amor de Cristo por nós nascem a força e a alegria de responder com o mesmo amor, colocando nossa vida ao serviço de Deus e dos demais. Com Margarida, dizemos também nós: "Doce Senhor, tudo o que realizaste, por amor a mim e a todo o gênero humano, leva-me a amar-te, mas a lembrança da tua santíssima paixão dá um vigor sem igual à minha potência de afeto para amar-te. Por isso me parece (...) ter encontrado o que tanto desejei: não amar outra coisa a não ser Tu, em Ti ou por amor a Ti" (ibid., Meditazione II, 46, p. 62).
À primeira vista, esta figura cartusiana medieval, como toda a sua vida, seu pensamento, parecem muito distantes de nós, da nossa vida, da nossa forma de pensar e agir. Mas se observarmos o essencial desta vida, veremos que também nos diz respeito e que deveria ser tão essencial também em nossa própria existência.
Ouvimos que Margarida concebeu o Senhor como um livro, fixou seu olhar no Senhor, considerando-O como um espelho no qual aparece também sua própria consciência. E a partir deste espelho, entrou luz em sua alma: deixou entrar a palavra, a vida de Cristo, seu próprio ser e assim foi transformada; sua consciência foi iluminada, encontrou critérios, luz e foi purificada. É precisamente disso que nós precisamos: deixar entrar as palavras, a vida, a luz de Cristo em nossa consciência, para que seja iluminada, para que compreenda o que é verdadeiro e bom e o que é mau; que seja iluminada e purificada a nossa consciência. O lixo não está somente nas ruas do mundo. Há lixo também nas nossas consciências e nas nossas almas. Só a luz do Senhor, sua força e seu amor é o que nos limpa, nos purifica e nos conduz no caminho reto. Portanto, sigamos Santa Margarida neste olhar dirigido a Jesus. Leiamos no livro da sua vida, deixemo-nos iluminar e limpar, para aprender a vida verdadeira. Obrigado.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dies Irae

Benedicite!



Clique no link abaixo para ouvir este belo hino do século XIII, que trata justamente do julgamento que a humanidade há de sofrer, num primeiro momento individualmente (na hora da morte) e depois todos os viventes na volta do Cristo (parusia). Acredita-se ter sido escrito por Tomás de Celano. Sua inspiração parece vir da Vulgata, tradução de Sofonias 1:15–16. Originalmente era a sequência da Missa de Defuntos, porém depois da Reforma Conciliar, a Igreja propõe-o para a celebração do Ofício Divino (forma Romana) precisamente na Última Semana do Tempo Comum, em que refletimos acerca da Escatologia Final. Serve como uma bela reflexão para o dia de Finados. Aliás, atendamos o que NP São Bento nos pede na Santa Regra, para que reflitamos acerca da morte todos os dias.


http://www.youtube.com/watch?v=Dlr90NLDp-0


Segue a letra, em latim, e logo abaixo a tradução. Para os que lêem a notação neumática e gostam de gregoriano, segue a partitura.




Dies Irae


1


Dies iræ! dies illa

Solvet sæclum in favilla

Teste David cum Sibylla!



2

Quantus tremor est futurus,

quando judex est venturus,

cuncta stricte discussurus!



3

Tuba mirum spargens sonum

per sepulchra regionum,

coget omnes ante thronum.



4

Mors stupebit et natura,

cum resurget creatura,

judicanti responsura.



5

Liber scriptus proferetur,

in quo totum continetur,

unde mundus judicetur.



6

Judex ergo cum sedebit,

quidquid latet apparebit:

nil inultum remanebit.



7

Quid sum miser tunc dicturus?

Quem patronum rogaturus,

cum vix justus sit securus?



8

Rex tremendæ majestatis,

qui salvandos salvas gratis,

salva me, fons pietatis.



9

Recordare, Jesu pie,

quod sum causa tuæ viæ:

ne me perdas illa die.



10

Quærens me, sedisti lassus:

redemisti Crucem passus:

tantus labor non sit cassus.



11

Juste judex ultionis,

donum fac remissionis

ante diem rationis.



12

Ingemisco, tamquam reus:

culpa rubet vultus meus:

supplicanti parce, Deus.



13

Qui Mariam absolvisti,

et latronem exaudisti,

mihi quoque spem dedisti.



14

Preces meæ non sunt dignæ:

sed tu bonus fac benigne,

ne perenni cremer igne.



15

Inter oves locum præsta,

et ab hædis me sequestra,

statuens in parte dextra.



16

Confutatis maledictis,

flammis acribus addictis:

voca me cum benedictis.



17

Oro supplex et acclinis,

cor contritum quasi cinis:

gere curam mei finis.



18


Lacrimosa dies illa,

qua resurget ex favilla

judicandus homo reus.



19

Huic ergo parce, Deus:

Pie Jesu Domine,

dona eis requiem. Amen.

 

 
Tradução:


1

Dia da Ira, aquele dia

Em que os séculos se desfarão em cinzas,

Testemunham David e Sibila!



2

Quanto terror é futuro,

quando o Juiz vier,

para julgar a todos irrestritamente !



3

A tuba esparge o poderoso som

pela região dos sepulcros,

convocando todos ante o Trono.



4

A morte e a natureza se aterrorizam

ao ressurgir a criatura

para responder ao Juiz.



5

o Livro escrito aparecerá

em que tudo há

em que o mundo será julgado.



6

Quando o Juiz se assentar

o oculto se revelará,

nada haverá sem castigo !



7

Que direi eu, pobre miserável?

A que Paráclito rogarei,

quando só os justos estão seguros ?



8

Rei, tremenda Majestade,

que ao salvar, salva pela Graça,

salva-me, fonte Piedosa.



9

Recordai-vos, piedoso Jesus,

de que sou a causa de Vossa Via;

não me percais nesse dia.



10

Resgatando-me, sentistes lassidão,

me redimistes sofrendo a Cruz;

Que tanto trabalho não tenha sido em vão.



11

Juiz Justo da Vingança Divina,

Dai-me a remissão dos meus pecados,

antes do dia Final.



12

Clamo, como condenado,

a culpa enrubesce meu semblante

suplico a Vós, ó Deus



13

Ao que perdoou a Madalena,

e ouviu à súplica do ladrão,

Dai-me também esperança.



14

Minha oração é indigna,

mas, pela Vossa Bondade atuais,

Não me deixeis perecer cremado no Fogo Eterno.



15

Colocai-me com as ovelhas

Separai-me dos cabritos,

Ponde-me à Vossa direita;



16

Condenai os malditos,

lançai-os nas flamas famintas,

Chamai-me aos benditos.



17

Oro-Vos, rogo-Vos de joelhos,

com o coração contrito em cinzas,

cuidai do meu fim.



18

Lacrimoso aquele dia

no qual, das cinzas, ressurgirá,

para ser julgado, o homem réu.



19

Perdoai-os, Senhor Deus

Piedoso Senhor Jesus,

Dai-lhes descanso eterno, Amém!

Reflexão de Santo Ambrósio para o dia de Finados

Do Livro sobre a morte de seu irmão Sátiro, de Santo Ambrósio, bispo

(Lib. 2,40.41.46.47.132.133:CSEL 73,270-274.323-324)
(Séc.IV)


Morramos com Cristo, para vivermos com ele


Percebemos que a morte é lucro, e a vida, castigo. Por isso Paulo diz: Para mim, viver é Cristo, e morrer é lucro (Fl 1,21). Como unir-se a Cristo, espírito da vida, senão pela morte do corpo? Morramos então com ele, para com ele vivermos. Morramos diariamente no desejo e em ato, para que, por esta segregação,nossa alma aprenda a se subtrair das concupiscências corporais.

Que ela, como se já estivesse nas alturas, onde não a alcançam os desejos terrenos, aceite a imagem da morte para não incorrer no castigo da morte. Pois a lei da carne luta contra a lei do espírito e apóia-se na lei do erro. Mas qual o remédio? Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24) A graça de Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor (cf. Rm 7,25s).

Temos o médico, usemos o remédio. Nosso remédio é a graça de Cristo, e corpo de morte é o nosso corpo. Portanto afastemo-nos do corpo e não se afaste de nós o Cristo! Embora ainda no corpo, não lhe obedeçamos, não abandonemos as leis naturais, mas prefiramos os dons da graça.

E que mais? Pela morte de um só, o mundo foi remido. Cristo, se quisesse, poderia não ter morrido. Não julgou, porém, dever fugir da morte como coisa inútil nem que nos salvaria melhor, evitando a morte. Com efeito, sua morte é a vida de todos. Somos marcados com sua morte, ao orar anunciamos sua morte, ao oferecer o sacrifício pregamos sua morte. Sua morte é vitória, é sacramento, é a solenidade anual do mundo.
Não diremos ainda mais sobre a sua morte, se provarmos pelo exemplo divino que dela resultou a imortalidade, e que a morte se redimiu a si mesma? Não se deve lastimar a morte, que é causa da salvação do povo. Não se deve fugir da morte, que o Filho de Deus não rejeitou, e da qual não fugiu.

Na verdade, a morte não era da natureza, mas converteu-se em natureza. No princípio, Deus não fez a morte, mas deu-a como remédio. Pela prevaricação, condenada ao trabalho de cada dia e ao gemido intolerável, a vida dos homens começou a ser miserável. Era preciso dar fim aos males, para que a morte restituísse o que a vida perdera. Pois a imortalidade seria mais penosa que benéfica, se não fosse promovida pela graça.

Por isso, tem o espírito de afastar-se logo da vida tortuosa e das nódoas do corpo terreno, e lançar-se para a celeste assembléia, embora pertença só aos santos lá chegar, e cantar a Deus o louvor, descrito no livro profético, que os citaristas cantam: Grandes e maravilhosas tuas obras, Senhor Deus onipotente; justos e verdadeiros teus caminhos, ó Rei das nações! Quem não temeria e não glorificaria teu nome? Porque só tu és santo; todos os povos irão e se prostrarão diante de ti (Ap 15,3-4). Contemplar também, ó Jesus, tuas núpcias, nas quais a esposa, ao canto jubiloso de todos, é conduzida da terra ao céu – a ti virá toda carne (Sl 64,3) – já não mais manchada pelo mundo, mas unida ao espírito.

Era isto que o santo Davi desejava, acima de tudo, contemplar e admirar, quando dizia: Uma só coisa pedi ao Senhor, a ela busco: habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida e ver as delícias do Senhor (Sl 26,4).